Quantas referências na sua vida um disco pode trazer?
Os nove meses de minha gravidez foram muito especiais. Hoje, passados quase dois anos de todo o processo, penso nesta fase e não consigo lembrar de nada ruim, ao contrário, tudo era tão legal, parecia que eu andava flutuando, e sempre com um sorriso no rosto. Talvez por isso que o Tom é um menino tão de bem com a vida, alegre e querido.
Tudo isso para falar que um pouco antes de ficar grávida entrei no mestrado. História Social na USP, para estudar as mulheres imigrantes, com um professor orientador que eu gosto demais. E minha barriga nem aparecia quando comecei a fazer a primeira disciplina, mas o bebezinho estava lá todas às quintas feira para assistir a “Identidades, Viagens e Cultura Imperial nas Américas (Séculos XIX e XX)”.
Como é o dia do rodízio do meu carro, eu ia de ônibus. Eu acordava cedo e cheia de energia. Como um ritual comprava água no supermercado do lado de casa, colocava uns damascos na mochila e pegava o 177-H Butantã-USP. A professora Mary Anne Junqueira é incrível, e eu lia com afinco os textos sugeridos: Homi Bhabha, Edward Said, Stuart Hall, Mary Louise Pratt, entre outr@s.
A turma era muito bacana, muito mesmo, mas sempre tem uns que a gente se aproxima mais, como foi com o Aruã, um baiano de Feira de Santana, inteligentíssimo, boa pinta e querido até o último fio do cabelo. Um dia, em uma de suas intervenções, ele fez uma citação, para se referir a sua reflexão pós colonial: “hoje, antes de vir pra USP, estava ouvindo Clube da Esquina, e estou um pouco Para Lennon e McCartney”. Eu achei o máximo, porque esta música é incrível, e cabia perfeitamente com o que ele tava falando.
Cheguei em casa e a primeira coisa que fiz foi ouvi-la, canção que também foi eternizada pela Elis Regina. E aproveitei para baixar muitas coisas do Milton Nascimento, entre ela o disco Clube da Esquina.
Nesta mesma semana teve um churrasco na casa do Daniel. Um super advogado, referência na luta pelos direitos das crianças e adolescentes. Nos conhecemos na faculdade através do Waldomiro, que nos apresentou bem rapidamente. Só falamos “oi, tudo bem?”.Daí por diante sempre que a gente se cruzava, a gente se cumprimentava.
Anos depois, eu o encontrei num bar lá na rua Augusta, onde eu estava com o Raul, um amigo em comum. Nos olhamos, nos lembramos e nos cumprimentamos. Mas eu não resisti e falei: “a gente se cumprimentou a faculdade inteira, mas a gente nunca conversou, né?”. E ele : “verdade, mas o que mais me chama atenção é que a gente não se conhecia e mesmo assim se saudava. Coisa um pouco rara nos corredores da PUC inclusive com quem se conhece”. Conversamos a noite inteira. E não paramos nunca mais. Ele naturalmente se tornou um dos meus melhores amigos, com AMOR em maiúsculas.
Um pouco antes deste churrasco, ele tinha ido ao show do encontro de vários integrantes do Clube da Esquina, na minha cidade natal, Mogi das Cruzes. Eu, por fora dos acontecimentos culturais da cidade, não me programei para ir, e o seu convite em cima da hora não deu para topar. E ia ser tão legal ir com ele porque ele gosta tanto de Minas Gerais como eu. Aliás, uma vez que ele foi para lá recomendei-lhe expressamente: vá tomar uma cerveja em Santa Tereza, e tente descobrir onde é a Esquina do famoso Clube. Minhas queridas primas Alba e Flavia fizeram questão de me levar lá para comer um pastel de angu, e no caminho pensava como seria legal morar naquele bairro.
Na festa em seu apartamento com um dos terraços com uma das vistas mais bacanas da cidade, na rua Tabatinguera, eu queria saber como tinha sido o show, e falei que estava num momento ouvindo muito o “Clube da Esquina”. Ele me deixou falando sozinha e voltou com o livro “Os sonhos não envelhecem”, do Marcio Borges. E só deu a dica: “leia isso aqui”.
Devorei o livro em 2 dias, que nem é um dos melhores livros do mundo, mas dá uma dimensão do momento histórico para a música brasileira que foi o encontro dos irmãos Borges e Bituca, apelido do Milton Nascimento. E também permeia a própria história do Brasil, como um filme delicado e arrebatador, cheio de paixão.
No domingo seguinte, depois de tomar café da manhã na padaria, passei na banca de jornal e vi que tinha uma destas promoções de jornal: “os melhores discos brasileiros”, e naquele dia era Clube da Esquina, como que um sinal!
Comprei e ouvia dia e noite, noite e dia. O Will ameaçou jogar pela janela, não agüentava mais. Mas eu e o bebezinho ouvíamos contentes o disco, que começava com Tudo Que Você Podia Ser, que segundo Marcio Borges, ele escreveu pensando no filme Viva Zapata, de Elia Kazan
Depois vem Cais, que diz a lenda que ele gravou de primeira. E eu adoro quando entra o piano para finalizar a canção:
Trem Azul é a que vem em seguida, uma música bem estradeira, e que foi a número cantada aqui em casa para fazer o Tom dormir.
A quarta faixa é Saídas e Bandeiras n° 1, uma vinheta de 48 segundos que para mim traduz o movimento de desbravar, traduzindo História!
Nuvem Cigana é uma das que eu mais ouço. Fala de entrega, companheirismo (eu danço com você o que você quiser dançar/Se você deixar o coração bater sem medo), toda cheia de detalhes e imagens.
Cravo e Canela, é cheio de requebrado, da para ouvir dançando com os ombros.
Dos Cruces, um bolero clássico de Carmelo Larrea, que Milton da uma interpretação igualmente dramática, mas não tão dançante, porém magistral
A oitava música é a minha preferida. A que eu ouvia pelo menos duas vezes por dia Um Girassol da Cor do Seu Cabelo. Acho uma declaração de amor romântica e psicodélica. E tem uma das frases que eu mais gosto da música brasileira: “é seu vestido cor de maravilha nua”.
É muito cinematográfica também, e tem influência clara dos Beatles. Adoro quando tem aquela quebra, com o som das cordas antes de começar o piano. Para mim, que nem entendo muito, acho uma obra prima.
San Vicente é muito nostálgica. Composta para uma peça de teatro, foi também interpretada pela Mercedes Sosa. E eu gosto dela com tanto carinho, ouvia bastante na Fita Cassete que a Geórgia gravou para mim no primeiro colegial.
Estrelas é outra vinheta mágica, que vem antes de Clube da Esquina 2. Esta, até então sem letras, mas muito emocionante. A voz do Milton acompanhando os instrumentos é emocionante e o refrão, parece que foi feito para frase “e lá se vai mais um dia”
Paisagem na Janela é a seguinte foi feita em uma noite por Lo Borges, inspirada no quarto em que dormiu, em um casarão em Diamantina, um dia antes de encontrarem o Juscelino Kubitschek na praça da cidade.
Depois, desta tenho que segurar o coração para Me Deixa em Paz, do Monsueto e Ayrton Amorin, cantando em dueto pela sogra da querida Dora, a (Dona) Alaíde Costa e Milton. É difícil não se emocionar com esta música. A voz da Alaíde é visceral, clamando por paz. Outra obra prima.
A próxima é a nostálgica Os Povos
Seguida de outra vinheta Saídas e Bandeiras 2 e depois Um Gosto de Sol, delicada canção, que revela a poderosa voz de Milton Nascimento, com um arranjo espetacular
Pelo Amor de Deus é uma súplica, que vem antes de Lilia, outra instrumenta de arrepiar, e em homenagem a mãe de Bituca.
Em Trem de Doido, Lo Borges fala sobre os nossos medos:
E penúltima é Nada Será Como Antes, música que fala de coragem. E que a Elis Regina soube interpretar incrivelmente.
O disco termina com a música do Fernando Brant Ao que vai Nascer.
São vinte canções. Que marcaram uma geração, pela sua inovação com músicas complexas e miscelânea de sons. Na verdade marcam vão marcar para sempre.
E nesta semana, depois da entrega da minha qualificação, curto uma “mini-férias acadêmicas” para depois começar a reta final do meu Mestrado. E para comemorar uma noite totalmente livre de obrigações, fui jantar na casa do Daniel. Que colocou em sua vitrola o vinil do Clube da Esquina. Ouvimos os dois LPs lado A lado B, oscilando momentos de papos sérios, papos engraçados, goles de vinho, e silêncio para ouvir o nosso disco.
PS: A capa é uma história a parte. É a foto de dois meninos que estavam na estrada perto de Nova Friburgo Não é de Milton e de Lô. Com a comemoração de 40 anos do disco, circulou nas redes sociais a fotos dos garotos hoje em dia, são jovens senhores que sabem que Nada será como Antes.