Lei Maria da Penha
E aqui um pequeno artigo sobre a Lei Maria da Penha que escrevi no ano passado para uma cartilha:
Resultado de uma luta que teve início há 30 anos, no julgamento de Doca Street pelo assassinato de sua namorada, Ângela Diniz, ocasião em que mulheres organizadas saíram às ruas com as palavras de ordem “Quem ama não mata”, a Lei 11.340/06 cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres e vem, principalmente, para garantir um tratamento justo, reparador e protetivo para as vítimas e para estabelecer ações concretas que devem ser adotadas pelo Poder Público, pela sociedade, pelos órgãos e profissionais responsáveis pelo atendimento dos casos, definindo conceitos e regras claras a serem obedecidas por todas as pessoas.
Ao longo destes trinta anos, diversas foram as conquistas alcançadas na luta pelo fim da violência contra as mulheres. O próprio reconhecimento deste padrão de violência que atinge tão somente as mulheres é fruto desta mobilização. Até a criação da primeira Delegacia Especializada na década de 80, não existiam números sobre a questão que seguia invisibilizada na sociedade.
Ainda na década de 80 foram criados os centros de referência e os primeiros SOS Mulher bo país. Na década de 90 foram criados os Conselhos de Direito, que hoje estão presentes em praticamente todos os estados brasileiros e em grande parte dos municípios.
No campo legislativo, em que pese os significativos avanços desde a Constituição Federal de 1988 acerca da garantia dos direitos humanos, não existia ainda no país uma legislação própria para tratar das especificidades da violência contra as mulheres. Diversos outros países da América Latina e Caribe já haviam adotado legislações desta natureza e o Brasil, apesar dos compromissos internacionais assumidos quando da ratificação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, ratificada em 1995) e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, ratificada em 1984), ainda não havia aprovado nenhuma legislação que de fato contemplasse as mulheres em situação de violência, em especial de violência doméstica e familiar.
Muitas das formas de violência contra as mulheres eram atendidas até então pela Lei nº 9.099/95, que instituiu em território nacional os Juizados Especiais Criminais, cujo escopo era a adoção de um procedimento célere e simplificado, voltado para a conciliação das partes e para a resposta estatal aos crimes de menor potencial ofensivo, cujas penas não fossem superiores a dois anos de privação de liberdade.
Ocorre que esta legislação, ao dar para casos de violência doméstica o mesmo tratamento de um acidente no trânsito, por exemplo, acabou por banalizar a violência contra as mulheres. Importante ressaltar que cerca de 80% dos casos atendidos pelos Juizados Especiais Criminais se referiam a crimes de lesões corporais leves e ameaças, os mais comuns na situação de violência doméstica e familiar contra mulheres. Tais crimes eram, normalmente, punidos com o pagamento de uma cesta básica pelo agressor a uma entidade beneficente, produzindo uma sensação constante de impunidade.
Preocupadas com a questão e certas de que uma legislação específica seria a melhor solução para os casos de violência contra as mulheres, um consórcio formado por ONGs, juristas e feministas especialistas no assunto começou a se reunir em 2002 para escrever um anteprojeto de lei sobre violência doméstica e familiar contra a mulher.
No final de 2003, no Seminário “Violência Doméstica” que aconteceu no Congresso Nacional, a proposta foi entregue à Bancada Feminina no Congresso Nacional e à Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República, que instalou um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com representantes de vários ministérios e ainda com duas representações do consórcio de ONGs para discutir a proposta apresentada e elaborar um projeto de lei e outros instrumentos do Executivo para coibir a violência contra as mulheres.
Em 07 de agosto de 2006, foi finalmente promulgada a Lei nº 11.340 – batizada pelo Presidente da República de “Lei Maria da Penha”, como justa homenagem à luta de quase vinte anos de Maria da Penha Maia Fernandes para que seu agressor fosse punido.
A nova lei já diz a que veio em sua própria ementa, onde evoca documentos significativos para as mulheres brasileiras como a Constituição Federal de 1988 que traz expressa a igualdade de direitos entre mulheres e homens e a determinação da criação pelo Estado de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, além da Convenção de Belém do Pará e da CEDAW.
Uma vez que se trata de uma legislação específica, cujo foco é a atenção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha se configura como uma ação afirmativa de caráter temporário, cuja possibilidade de adoção está prevista no artigo 4.º da CEDAW, e que tem por finalidade acelerar o processo de igualdade baseada no gênero, neste caso, através do enfrentamento a um padrão específico de violência que atinge apenas as mulheres.
Por esta razão, a Lei Maria da Penha não pode ser considerada uma medida discriminatória, ao contrário, figura entre seus principais objetivos a garantia do princípio da igualdade, o que se dá a partir do reconhecimento das desigualdades historicamente construídas em nossa sociedade. Repete assim, a fórmula de outros instrumentos legais presentes em nosso ordenamento jurídico tais como, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e as leis de proteção as pessoas portadoras de deficiência.
Ao longo de seus 46 artigos, a Lei Maria da Penha estabelece uma nova perspectiva para as mulheres brasileiras no enfrentamento da violência doméstica e familiar, especialmente ao reconhecer que todas as mulheres, independente de suas muitas especificidades e diversidade, têm o direito ao gozo dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e que a violência doméstica e familiar contra as mulheres é uma das formas de violação dos direitos humanos.
Por fim, cumpre destacar que, se por um lado o desafio da implementação da Lei Maria da Penha é grande, os resultados são compensadores. Nos estados onde ela está sendo implementada corretamente, como é caso do Mato Grosso, a reincidência praticamente acabou, deixando claro que a vontade política de aplicar a lei faz toda a diferença na vida das mulheres vitimadas.