Cozinha da Matilde

Gostoso demais #5 – Caranguejo toc-toc

Aproveitando que logo devo voltar ao Maranhão, resolvi entrar no clima e postar uma das delícias de lá: o caranguejo toc-toc, que a gente come na praia com pé na areia, acompanhado de uma cervejinha gelada enquanto assunta o movimento.

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Ele entra na categoria das comidas lúdicas — aquelas que demandam um certo trabalho pra ser devoradas — encabeçadas pelos amendoins e ovos de codorna na casca, e ainda tremoços, mariscos e ostras, todas com um obstáculo que se interpõe entre você e a bocada. E é justamente este obstáculo que faz todas elas perfeitas pra acompanhar bebida e conversa em volta de uma mesa de bar. A gente nem vê o tempo passar enquanto bate-papo, quebra o caranguejo com o martelo e tenta alcançar o último fio de carne escondido no fundo da casca da pata.

Eu me divirto só de olhar em volta. Na última ida a São Luis, sentados na barraca Estrela D’Alva ou do Gaúcho, como é conhecida (o melhor toc-toc da cidade!), passei um par de horas observando como cada um atacava seu caranguejo.

Uma senhora arregaçou as mangas, endireitou o corpo na cadeira, olhou nos olhos do bicho que pousava na tabuinha à sua frente e, depois de um suspiro, desceu o pequeno porrete com uma eficiência que me entusiasmou.

Na mesa ao lado, um rapaz ensinava ao filho pequeno como pegar toda carne: “Olha só,  ainda está cheio de carne aí, bate mais aqui ó. Isso! Agora puxa por aqui… viu? Olha aí o filezão que você tava deixando… ” Na outra mesa, um senhor com ares de professor solenemente retirava as carnes da cabeça e preparava com farinha e vinagrete, para então distribuir aos demais integrantes da mesa. A criançada massacrava as patinhas, e depois só se escutava o chupa-chupa da carapaça entre risos e banhos de mar.

Não demos conta das duas porções que pedimos, uma com cabeça e outra sem (queríamos sentir a diferença!), e logo um rapaz que passava perguntou se a gente ia comer tudo, e a nosso convite acabou dando cabo do que restava; aproveitou pra mostrar como gostava de quebrar cada patinha, com delicadeza, pegando bem no ângulo pra tirar a carne inteira, e depois quase gemeu quando abriu a cabeça e viu o brilho da gordura do bicho…

E a gente, que não tinha assim tanta expertise, acabou aprendendo que o filé não eram as patinhas, mas sim aquela gordura escura, rica, forte, pura sustança. E meses depois aprendemos que fica mais saborosa dependendo da alimentação do bicho (o que é óbvio!!!), e que é comum serem capturados no mangue e depois “cevados” em casa, em pequenos currais de fundo de quintal, onde cada um tem sua fórmula pra deixar seus caranguejos mais gostosos. Em Belmonte, na Bahia, experimentamos alguns cevados com milharina, dendê e laranja que estavam de revirar os olhos, com o dendê aparecendo de leve, dando um toque especial ao sabor adocicado da carne.

Caranguejo ou siri?

Aliás esse toque adocicado é o que diferencia em sabor a carne do caranguejo da carne do siri, porque enquanto os primeiros vivem no mangue, os siris vivem no mar (a não ser quando sobem rios próximos ao mar em busca do mangue, com suas águas salobras e seu rico fundo lodoso).

Todo siri é, na verdade, também um caranguejo. Siri é o nome popular dado aos membros da Portunidae, uma das várias famílias de caranguejos. Ambos pertencem a um grupo maior de crustáceos, os decápodes, que, como diz o nome, têm como principal característica o fato de possuírem dez patas – primos de camarões e lagostas que pertencem à mesma turma.

Anatomicamente, a maior diferença entre os siris e as demais espécies de caranguejo está no formato das duas patas traseiras. Nos siris, elas são chatas como uma nadadeira, que eles usam também para nadar, já que são os únicos caranguejos que nadam. Os caranguejos, por sua vez têm as patas traseiras pontiagudas, como uma unha, perfeitas para andarem sobre as raízes aéreas do mangue.

Caranguejo do Maranhão, sim senhor!

E voltando ao Maranhão, o mais curioso foi perceber que até ali eu basicamente associava caranguejo ao Ceará e às concorridas barracas de praia de Fortaleza, especializadas na iguaria. Na visita a São Luis, contudo, descobri que o maior mangue do país começa no Amapá e vai até o Maranhão, e aliás, só não é o maior do mundo porque perde para outro mangue, na Índia. E ainda descobri que boa parte do caranguejo que é vendido em Fortaleza vem do Maranhão. Daí que se era pra falar em caranguejo toc-toc, eu tinha que falar do Maranhão!

E o Mangue?

O Manguezal é uma zona úmida, definida como “ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestre e marinho, característico de regiões tropicais e subtropicais, sujeito ao regime das marés” (SCHAEFFER-NOVELLI, Y. Manguezal ecossistema entre a terra e o mar). 

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É caracterizado por uma vegetação costeira resistente à água salgada e salobra, que passa por campos alagados pela maré, por bancos de lama ricos em nutrientes, bancos de sal e pântanos salinos. Essa vegetação também é chamada de mangue, e é composta principalmente por árvores com raízes aéreas, que dessa maneira se equilibram no lodo (as raízes têm pezinhos, se a gente olhar bem) e ainda captam o oxigênio que falta ao solo. É característico de áreas onde acontece o encontro de água doce e a água do mar.

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O solo do manguezal serve como habitat para diversas espécies, como o caranguejo, por conta dessa grande quantidade de matéria orgânica em decomposição que serve de alimento à base de uma extensa cadeia alimentar. Pra quem olha com calma e atenção aos detalhes, o mangue é pura vida, cheiros e cores que vão dos mais diversos verdes até os mais profundos tons de terra, passando pelo vermelho intenso de vários crustáceos e dos guarás, sua ave símbolo.

Navegar pelos caminhos que se abrem no meio dos manguezais é uma experiência única. As águas escuras, iluminadas por frestas de luz, se misturam com as raízes que crescem e sobem compondo um intrincado emaranhado, do qual saem os troncos finos que se fecham em um verde teto, no formato de uma abóboda. Eu, que acredito na natureza como deusa que nos rege e guia, me sinto em uma catedral. E é mesmo sagrado um lugar que abriga tanta vida.

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Um mapeamento realizado pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil, em 2009, apontou que os manguezais abrangem cerca de 1.225.444 hectares em quase todo o litoral brasileiro, desde o Oiapoque, no Amapá, até a Laguna, em Santa Catarina. Mas as maiores extensões de manguezais da costa brasileira ocorrem entre a desembocadura do rio Oiapoque, no extremo norte, e o Golfão Maranhense, formando uma barreira entre o mar, os campos alagados e a terra firme. Do sudeste maranhense até o Espírito Santo, os mangues são reduzidos e estão associados a lagunas, baías e estuários.

E falando em mangue e em Maranhão, se for por esses lados, faça o passeio até Alcântara, e no fim da tarde saia de barco para ver a revoada dos guarás, está entre as coisas mais lindas que vi na vida e nesse mundão. Por mais que eu fale a respeito, nada vai chegar próximo à grandeza do espetáculo. Então apenas recomendo: Vá!

E se curtiu o ritmo do toc-toc, compartilhe e passe o caranguejo adiante. O mangue agradece!

 

Texto e fotos: Letícia Massula – Revisão: Valéria Pandjiarjian